domingo, 22 de abril de 2001

mulher, amor, fecundidade

Fé e cultura março 2001
Sou engenheira civil, sou monja beneditina!
Para mim o ser engenheira, não foi um curso que tirei, ou simplesmente uma profissão que exerci; é uma forma de estar na vida, uma abertura ao mundo, tentando compreendê-lo... foi talvez no meu fascínio pela obra da criação, que Deus pegou para me chamar para o mosteiro...
Segundo Jacques Leclerc "o monge procura única e directamente a Deus: uma pessoa torna-se monge porque ouviu um dia o apelo de Deus, a procurá-lo somente a Ele.
Nesta vocação, o chamamento de Deus, e o Seu serviço não aparecem vestidos com uma forma definida, como por exemplo o ministério sacerdotal, o ensino, o cuidar de doentes. Este apelo e este serviço aparecem na sua nudez.
Retiramo-nos para o Mosteiro para procurar Deus: isto chega!"
Será portanto o monge – a monja – como alguém disse, um religioso não especializado, o que nesta época de especializações até à mais ínfima parcela do saber, poderá parecer algo estranho...
Sou então qualquer coisa como uma trolha religiosa, sem especialidade de coisa nenhuma!



Mulher... fêmea do género humano.
O que é que isto diz da essência profunda do ser mulher?
Deste ser que acolhe e gera a vida? Que a alimenta, que a faz crescer e que a põe no mundo? Que ama com um amor que acolhe, que está presente... que é corajosa na dor, reagindo com fortaleza aos embates duros...
Ser mulher é ser aquilo que em cada momento o eu mais fundo pede e clama, é dar-se, é receber, é amar, é rir é chorar, é gritar a dor e a alegria com o mundo que á nossa volta gira...
Mulher, amor fecundidade.... será que se pode separar estes 3 conceitos?
Pode-se ser mulher sem amar, amar sem fecundidade?
Somos feitas para acolher a vida, para a gerar em nós, para nos separarmos dessa vida gerada quando chega a hora... Não é uma vida gerada para nós próprias, mas para que separada seja mais vida... há que viver a geração da vida, mas há também que ter a consciência de que o cordão umbilical tem que ser cortado...
Creio que qualquer amor só é digno desse nome se é fecundo, se a partir dele nasce vida...
Assim é com a vida física, assim é com a vida espiritual... aquilo que se dá tem que ser dado, e dado de graça... não pode ser um empréstimo! ... ou não será amor!

...
Quando penso em mulher, amor, fecundidade não posso deixar de pensar em Nossa Senhora, o modelo mais perfeito de mulher, que amou, com um amor de tal maneira fecundo que acolheu e deu vida à própria Vida...
Longe no tempo e no espaço? Talvez nem tanto...
Todos os dias, ao cair da tarde, a Igreja entoa com ela o Magnificat, o espanto de Maria pela fecundidade do seu Amor...


Também me espanto, ...e tanto! sempre que alguém me conta que algo que eu disse, por vezes com ligeireza, ajudou em alguma coisa, quando me agradecem a oração, quando sinto que acordo um eco de uma vida nova em alguém... nessas alturas também
A minha alma glorifica o Senhor
E o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador
Que me chamou para esta vida, onde cada vez descubro com mais força que uma vocação, não é para ser vivida simplesmente numa boa...
Que me chamou à minha vocação específica, a ser monja beneditina, a encontrar-me nEle e só nEle, com todos os que me rodeiam...
A descobrir todos os dias que não deixei nada de mim para trás... Como poderia alguém pensar que o encontrar o Amor, o Amor pleno, pode truncar alguma parte de nós?
Como todo o Amor, este é fecundo, e sendo tão forte, a sua fecundidade estende-se por todo o mundo... E Ele fecunda a minha vida que com Ele e nEle gera mais vida naqueles que me estão perto, ou naqueles que de longe me estão presentes na oração...
Eu lhe dou graças, Porque pôs os olhos na humildade da sua serva,
...estando eu tão satisfeita com a minha vida, tendo tudo: amigos, um trabalho aliciante, um ordenado razoável, casa, carro, boa saúde, uma família fora de série, boas perspectivas de futuro... que mais poderia querer?
Vivia num ambiente de trabalho quase exclusivamente masculino, com bastante stress, mas excitante, e que de gostava muito! Em almoços e jantares de serviço era não raras vezes a única mulher ...
Uma vida da qual fazia parte o ir ver o pôr-do-sol à Foz, os passeios, as noitadas até às quinhentas, com amigas e amigos discutindo qualquer coisa à volta de um bom copo...
Passar desta esfera animada, para um meio que me parecia um bocado morno, fechado entre 4 paredes, ainda por cima só com mulheres, onde me teria que levantar às 6 ½?
Eu, habituada a deitar-me tarde, ir para a cama todos os dias às 9 ½ ou 10horas, hora a que a noite começa... E ter que pedir autorização para tudo, eu que não tinha que dar contas a ninguém?
E o relacionamento com os outros nomeadamente com o sexo oposto?
E o amor, a ternura, o carinho que sentia, que recebia que dava?
E as conversas sem tempo? Renunciar definitivamente a casar-me e ter filhos?
E a importância que eu sentia ter nos meios onde me mexia?
Teria que deixar um bocado de mim para trás, teria que decepar uma parcela do meu eu? Aquela parcela que me fazia mais apreciar a vida...


Claro que não foi de ânimo leve que respondi que sim Àquele que pôs os olhos na minha pequenez, que eu pensava ser uma grandeza...
Não deixei a vida que tinha porque me parecesse que não era boa, por não me sentir bem...
Mas se Alguém em quem se confia diz "vem comigo e dar-te-ei muito mais" poder-se-á dizer que não?

De hoje em diante me chamarão bem aventurada todas as gerações
O Todo Poderoso fez em mim maravilhas ...
Descobri que aceitando este convite de seguir Jesus, além de não ter sido necessário amputar nenhuma fatia de mim própria, eu me podia tornar muito mais eu, e sendo assim muito mais mulher ...
Ao ler a minha história para trás, e ao descobrir a importância que tinha tido o meu papel de mulher num mundo de homens, descobri também a importância de ao vir para o Mosteiro, não fechar as portas à minha sensibilidade, ao meu acolher o outro, à minha capacidade de estar, à minha capacidade de amar ...
Sebastião da Gama no seu poema Claridade fala da sua vida passada como de uma porta aberta para esta vida de agora...
Mais do que uma porta aberta parece-me que foi um espaço aberto, na medida em que, eu sou agora, aquilo que fui sendo ao longo de todos os anos, dias, minutos que passaram...
A minha maneira pessoal de vivência do Amor, do Amor no feminino, hoje, resulta de uma aprendizagem que fiz desde que nasci, em casa, na escola, no trabalho, com a família, amigos, namorados, colegas, irmãs, simples conhecidos, enfim com TODA a gente com que me fui cruzando e que, por anos ou minutos, fizeram, ou fazem, parte da minha vida... é uma vivência que está alicerçada em todo o Amor que recebi, que vivi, que dei, que fui... até a este preciso momento!
Descobri que o entregar-me de corpo e alma a este chamamento me transforma cada vez mais em mim própria... se eu deixar...
É estranho como realmente a oração, o acolhimento, a maneira de estar nos pode dar esta certeza de que o Seu Amor gera em nós a vida para os outros...
Esta vida só nasce se sairmos de nós próprias, quando nos deixamos a nós para ir ao encontro de quem chega com Ele...
Só depois de estar no Mosteiro compreendi, ou mais precisamente senti, que a minha vida, longe de ficar mais fechada, se abriu para todo o mundo!
Ao contrário de uma redução, da vida passada no eixo Porto-Coimbra, para uma vida fechada dentro dos muros do mosteiro, passou a ser uma vida vivida no mundo inteiro, com o mundo inteiro – é a este mundo grande que a oração me leva, é com o mundo que rezo, e por ele que rezo.
É uma vida plena, em que me realizo em todas as dimensões do meu ser!

Santo é o seu Nome
Pois que me faz compreender que no meio das vicissitudes, quando as coisas parecem que não estão bem, é aí que o Amor é forte.
O receber, o dar, o pedir o perdão, obriga a um esquecimento de nós próprias para ir ao encontro do outro... por vezes obriga a um salto doloroso, (e quanto!) sobre as nossa maneiras de ver e de ser...
O perdão é também uma faceta do Amor, uma das suas formas mais fecundas, pois gera vida onde antes só havia morte...
É quando consigo viver este imenso Amor, que posso compreender que a fecundidade não está num processo de multiplicação, em fazer que as outras pessoas sejam iguais a mim, que pensem como eu, mas sim em ajudar cada um a viver a sua realidade o mais profundamente possível... só assim a vida nasce, mesmo por vezes através da dor.
O Seu Amor estende-se de geração em geração
Sobre aqueles que o temem....
S. Bento insiste várias vezes na sua Regra no "nada antepor ao amor de Cristo"... que nada para mim tenha mais força que este amor...
Mas eu, leio também aqui, o deixar que o Amor de Cristo passe e se estenda através de mim, para o mundo... muitas vezes sem reparar:
Um dia fui levar uma irmã ao Porto a um médico. Enquanto esperava pelo fim da consulta, dei várias voltas, e acabei por estacionar ao pé da Câmara onde estava um arrumador de carros. Cumprimentei-o e disse-lhe que parava em 2ª fila pois ficaria dentro do carro. Enquanto esperava fui rezando o terço e rezei-o acompanhando o homem com os olhos e com a oração... quando me fui embora, cerca de ¾ de hora mais tarde, disse-lhe até à vista, ao que ele respondeu qualquer coisa como: "adeus irmãzinha" ou outra coisa semelhante.
Disse-lhe então, que enquanto ali estava tinha rezado por ele... disse-o sem nenhuma intenção especial, talvez para me desculpar de não lhe dar nada. Contudo o efeito que teve no sujeito foi espantoso: era um homem meio curvado, ainda novo, com um mau aspecto semelhante a muitos que se vêm em situações idênticas! Mas vieram-lhe as lágrimas aos olhos, endireitou as costas, pareceu-me que até cresceu, e só disse: "obrigado oh muito obrigado..." Tenho-me lembrado muitas vezes dele...
Tenho plena consciência que EU não fiz nada... só me limitei a nada antepor ao Amor de Cristo por aquele sujeito, que assim por uns instantes, descobriu que não era simplesmente um arrumador de carros à espera de umas moedas ... era alguém... um homem...
Como pode ser fecundo em mim o amor de Cristo!


Manifestou o poder do seu braço
E dispersou os soberbos
Derrubou os poderosos do seu trono
E exaltou os humildes
Aos famintos encheu de bens
E aos ricos despediu de mãos vazias
... Enfim baralha os conceitos humanos, não respeita o politicamente correcto, troca as voltas às nossas ideias preconcebidas, às nossa maneiras de ver...
Na minha vida assim aconteceu, e vai acontecendo todos os dias: tudo aquilo que penso ser um estatuto, um bem adquirido, afinal não vale nada, e tudo o que ofereci, tudo aquilo pensei que tinha deixar para trás, me vai sendo pedido que ponha em funcionamento mais despojado, mais livre de adornos:
Não posso abandonar a ternura – há tanta gente que dela necessita!
O carinho ... como ajudar esta irmã doente sem carinho?
A sensibilidade, a minha sensibilidade, a minha maneira de acolher, de estar com os outros...
Quando acolho um grupo de escola, como o poderia fazer se cortasse a minha maneira específica de amar?
Que sentido teria rezar salmos tantas vezes ao dia, onde as vozes de toda a humanidade cantam as suas dores e as suas alegrias, se não unisse com amor a minha voz e todo o meu ser às palavras do salmista?
Só nos segundos em que estou unida de corpo e alma ao universo que fala com o seu Criador, o Seu Amor torna fecunda a minha oração...
E alarga as paredes do Mosteiro para as fronteiras do mundo...
Deus chamou-me e pediu-me tudo, para tudo purificar com o Seu Amor:
Assim, longe de ser uma mulher truncada em algo de essencial, sinto que sou muito mais Mulher, mais livre agora!
Vou conhecendo melhor aquilo que sou... e só conhecendo aquilo que sou, o posso dar, posso fazer nascer nos outros a Vida que por mim passa...
Mais do que ser eu que acolho o Amor, é o sentir-me acolhida neste Amor imenso, quando me deixo inundar pela sua Graça, que a Sua Vida passa de mim para os outros, que sei, com toda a certeza, que sou uma Mulher na sua essência mais funda, na sua especificidade de amar, de acolher e gerar a vida para o mundo...





...E Deus está sempre pronto a acolher-me...
Acolheu a Israel seu servo
Lembrado da Sua misericórdia
Como tinha prometido a nossos pais
A Abraão e à sua descendência para sempre
Ele acolhe-me e como prometeu a Abraão e à sua descendência, tornar-me-á fecunda em extremo...
Em vez de meus pais e meus irmãos dá-me muitos filhos, filhos conhecidos e desconhecidos, que vejo, ou por quem rezo, mas que no seu Amor encontro e recebo no Seu/meu coração, para os deixar depois partir ...
Ele acolhe-me, acolhe todos os que todos os dias se aproximam ou se afastam, todos os que no fundo do coração, mesmo sem o saber, o buscam...
Para mim, o ser mulher, o amar com um amor fecundo, é a possibilidade de me encontrar e me perder em Alguém, onde me encontro a mim própria, onde me encontro com todo o Universo, onde encontro toda a humanidade, onde amo e me entrego por todos e qualquer um ...
...é o perder-me em Alguém que faz com que as dimensões das paredes que me cercam não tenham a mínima importância, pois, com Ele, a dimensão da minha vida é o infinito eterno feito presente no mesmo instante em que digo:
Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo
Como era no principio agora e sempre
Amen

Março 2001

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